Kivitz comete pecado contra a quarta pessoa da trindade

O Evangelho de Brian
4 min readNov 4, 2020

--

Na semana passada o pastor Ed René Kivitz fez uma pregação on-line falando sobre a necessidade de “atualizar” o sentido do Novo Testamento para que ele se torne realmente uma mensagem que nos comunique algo hoje, não uma mensagem que prega o passado como modelo, mas uma mensagem que orienta o futuro, como uma “carta para um mundo novo”.

Na sua pregação, Kivitz demonstrou razoavelmente que as orientações de Paulo de Tarso às igrejas e aos seus colaboradores devem sem compreendidas dentro do seu contexto, não como uma verdade atemporal. O exemplo que ele usou foi a mensagem de Paulo a Filemon, tendo lhe enviando de volta um escravo fugido e orientando a ambos tratarem-se como irmãos em Cristo. A pergunta que deve passar na nossa cabeça hoje é se Paulo endossava e apoiava o sistema escravista, ou se ele fazia isso apenas para beneficiar um cristão rico, proprietário de escravos, e seu patrocinador. É justo que o homem moderno se pergunte que tipo de virtude Paulo pretende ensinar com isso. Mas Kivitz argumenta que, naquele contexto, enviar o escravo de volta ao seu mestre como “irmão em Cristo” seria o melhor a ser feito, e que uma vez isto tornado regra moral, muitos senhores teriam de tratar seus escravos como colaboradores, e não como objetos. Apesar de Paulo parecer um apoiador da escravidão, ele estaria dando um status moral à condição do escravo, e colocando a sementinha do que seria, no futuro, um mundo sem escravidão.

Sim, o cristianismo é uma religião escandalosamente igualitarista, porque coloca o homem livre e o escravo, o grego e o judeu, o macho e a fêmea, na mesma condição de ser moral dotado de uma alma racional e responsabilidade diante de Deus e do Cosmos. E não se deixe enganar pela banalização grosseira de malucos que querem enxergar marxismo aqui; ao contrário, é o marxismo que é debitário do cristianismo em sua pregação igualitária. Mas o pastor Kivitz se pergunta o que poderia ser dito para os dias de hoje, dentro deste mesmo espírito evangélico.

O que Kivitz faz é dizer que o ensinamento moral de Paulo não é uma ética atemporal, mas a versão histórica e condicionada pelas circunstâncias de uma ética universal que existe em potência no espírito do evangelho. Por isso, ele acerta em usar a palavra “atualizar” — justamente a palavra que deixou furiosos diversos religiosos tradicionais, como Silas Malafaia. Mas a palavra atualizar, em sentido aristotélico original, significa isto: tornar em ato o que é mera potencialidade.

Quando dezenas de religiosos tradicionais insistem que a Bíblia não precisa ser “atualizada” — sempre dito com escárnio e desdém — mal sabem eles que estão dizendo que a Bíblia não deve ser tornada em ato. A Bíblia é, para estes grupos, ato puro, assim como Deus — este sim, que não pode ser atualizado porque é perfeito, e a perfeição é ato puro sem potencialidades, e o que não tem potencialidade não pode ser atualizado, por mera lógica. Portanto, dentro desta dogmática literalista, se a Bíblia é perfeita, e inerrante, ela não pode ser atualizada. Neste caso a Bíblia é um fetiche, um objeto sobrenatural materializado no mundo natural, parte integrante da divindade — e mesmo sendo grosseiramente irônico talvez algumas pessoas a entendam realmente desta forma.

O problema é que a maior parte das afirmações morais religiosas não se provam pela razoabilidade, nem pela evidência, mas simplesmente pela imposição da autoridade do texto. O texto bíblico precisa ser perfeito, inerrante, divinamente inspirado para que a autoridade religiosa possa afirmar seu conteúdo de forma impositiva, como “a vontade de Deus”. Todo esse sistema de juízos e predicações morais é baseado em nada além do que a autoridade de um texto que dizem ser perfeito. Quando o pregador diz: “Deus assim o quer, porque está escrito”, não há nenhuma instância de verificação do valor desta afirmação para além da própria afirmação. Note como a doutrina da inspiração divina do texto é produzida fora do texto, por uma reflexão posterior, assumida como dogma pelas autoridades religiosas. Não há como fugir a uma doutrina explicativa que dá sentido ao texto, mesmo para acreditar na sua inerrância e inspiração é necessário um ajuste interpretativo que se dá fora do texto.

O interessante é que Ed Kivitz reconhece essa autoridade como dada, ele acredita na inspiração e revelação divina. Mas uma coisa é dizer que o texto bíblico é inspirado e sagrado, outra coisa é dizer que é inerrante e infalível, e outra coisa ainda é dizer que ele é suficiente para a orientação moral, sendo totalmente dispensável qualquer raciocínio humano para atualizar — tornar em ato — o seu sentido. O que ele faz é meramente reconhecer o óbvio: que é necessário um esforço humano para a compreensão do seu sentido potencial. Aliás, buscar o sentido espiritual por trás da letra é exatamente o que ensina Paulo em suas cartas. Paulo reinterpreta o sentido de vários mandamentos judaicos, e oferece uma atualização da lei mosaica para um mundo novo, um mundo de gentios para quem a lei mosaica nada comunicava.

Autor: Cassiano

--

--

O Evangelho de Brian

Um grupo de estudiosos interessados na religião como fenômeno social, nos dedicamos aqui a trazer uma visão o mais objetiva possível do fenômeno religioso.